Escola de Mariana vira referência na preservação de ofícios tradicionais

Na era da inteligência artificial, a Escola de Ofícios Tradicionais de Mariana se volta aos saberes ancestrais — Foto: Maira Cabral/O Tempo

Na era da inteligência artificial, a Escola de Ofícios Tradicionais de Mariana se volta aos saberes ancestrais

12/06/2023 às 11h34

Em um mundo cada vez mais conectado e dominado pela tecnologia, a cidade histórica de Mariana, na região Central de Minas Gerais, se destaca por abrigar uma iniciativa singular: a Escola de Ofícios Tradicionais, que, em plena era da inteligência artificial – que vem gerando temores tanto por suas potenciais ameaças a profissões hoje estabelecidas quanto pela perspectiva de extinção da humanidade – tem o ambicioso objetivo de promover a formação de profissionais qualificados em técnicas construtivas tradicionais, contribuindo prática e filosoficamente para a preservação do patrimônio histórico e cultural. 

Fundada há quatro anos pelo Instituto Pedra, organização sem fins lucrativos comprometida com a preservação do patrimônio histórico e cultural, a Escola de Ofícios Tradicionais de Mariana oferece cursos de um semestre de duração, com foco em áreas como alvenaria, carpintaria, forjaria, cantaria e pintura. Lá, os estudantes têm a oportunidade de aprender técnicas ancestrais e aprimorar suas habilidades em um ambiente propício ao desenvolvimento profissional e cidadão. 

Um dos idealizadores do projeto, Luiz Fernando de Almeida, ex-presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e atual presidente do Instituto Pedra, explica que ideia surgiu de uma discussão sobre como implementar ações no sentido de proteger o patrimônio municipal em uma Mariana marcada pelo trauma do rompimento da barragem da mineradora Samarco (um empreendimento conjunto entre a Vale S/A e a BHP Billiton) no subdistrito de Bento Rodrigues, em 5 de novembro de 2015. “Foi quando tive o insight de fazer esse trabalho de formação, que é necessariamente um trabalho de longo prazo”, comenta. 

“Eu tinha a percepção de que cursos desse tipo haviam acabado, o que se confirmou. Tanto que, hoje, a Escola de Ofícios Tradicionais de Mariana é a única no país com essa proposta. E como, após dez anos atuando no centro da política pública do patrimônio, eu tinha conhecimento de que havia um problema de formação de força de trabalho na região e de falta de alternativas do ponto de vista profissional, pensei que esta seria uma ideia que poderia vingar”, explica, detalhando que a cidade possui uma rica concentração de mestres de ofícios, sendo, portanto, um terreno fértil para a iniciativa. Com isso, a escola surge como uma oportunidade para que essas habilidades sejam transmitidas às novas gerações, garantindo a continuidade dessas tradições e também gerando novas oportunidades profissionais. 

“Então, a partir dessa ideia geral, montamos um projeto submetido ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que, inicialmente, o financiou com recursos diretos”, informa. Hoje, o projeto usa recursos disponibilizados por meio da Lei Rouanet de Incentivo à Cultura e conta também com o patrocínio do Instituto Cultural Vale.

Dinâmica 

Ney Nolasco, gerente de ensino da Escola de Ofícios Tradicionais de Mariana, explica que, com aulas entre terça e quinta-feira, os cursos são ministrados por duplas formadas por um mestre artesão – como é chamado o profissional que domina as técnicas tradicionais com maestria – e um professor – que tem graduação em universidade. Juntos, eles compartilham com os alunos seus conhecimentos e segredos, transmitindo os saberes ancestrais e técnicos por meio de aulas que, até quando teóricas, são voltadas para a prática. 

Além disso, Nolasco lembra que a escola promove visitas técnicas a obras de conservação e restauro, proporcionando aos alunos a oportunidade de vivenciar o trabalho real e aprender com os profissionais atuantes, enriquecendo a formação dos estudantes e aproximando-os da realidade do mercado de trabalho. Ele ainda assinala que a Escola de Ofícios Tradicionais prevê em sua grade curricular temas como empreendedorismo, gestão cultural e sustentabilidade, visando complementar e consolidar a aprendizagem dos alunos e ampliar horizontes. 

“Por semestre, abrimos cem vagas, todas isentas de quaisquer custos”, sinaliza, lembrando que os alunos recebem o material didático gratuitamente, têm direito a um lanche e ainda ganham vale-transporte. “É muito curioso como pessoas muito diversas nos procuram. Temos desde alunos não alfabetizados até doutores fazendo cursos juntos, o que é muito especial, possibilitando que esse seja um ambiente de muitas trocas de conhecimento”, comemora. 

Consolidada, mas não acomodada 

“Hoje, posso dizer que, como projeto, a escola está consolidada. Mas ela não está acomodada”, pontua Luiz Fernando de Almeida, garantindo que a iniciativa segue em processo de transformação e de permanente aprendizado e reflexão sobre sua própria atividade. Ele destaca que um dos objetivos no curto prazo é expandir as atividades de extensão, proporcionando maior interação com a comunidade local. “Foi o caso, por exemplo, da ação que fizemos em relação à conservação do museu do Iphan, que foi restaurado por nossos alunos”, cita.  

“Queremos constituir Mariana como centro de reprodução e pensamento desses ofícios tradicionais. E isso já está acontecendo. A escola hoje caminha para ser uma referência nacional”, afirma o presidente do Instituto Pedra, sublinhando que a iniciativa vem recebendo visitas de pessoas interessadas em implementar proposta semelhante em outras cidades, caso de Congonhas, em Minas Gerais, e de Salvador, na Bahia. Para Almeida, aliás, é vergonhoso que um país dessas dimensões tenha apenas uma escola com esse foco. 

Para Almeida, aliás, não é surpresa que a iniciativa cresça e floresça em um mundo cada vez mais apreensivo com o avanço tecnológico. “Atualmente, ao mesmo tempo em que estamos profundamente ligados à tecnologia e ao virtual, também nos movimentamos em um sentido de revalorização da técnica e da preocupação com a sustentabilidade do planeta”, reflete, indicando que essa dualidade nos imbrica em uma tensão sobre qual caminho devemos seguir enquanto civilização. “Nesse cenário, de certa maneira, o trabalho com os elementos da natureza, que constituíram uma cultura, voltou à tona. O que me faz acreditar que a escola apareceu em uma ocasião muito oportuna, havendo, neste momento, um reforço da ideia de que a relação com o mundo simples, uma noção de que o domínio dos processos de produção – a compreensão de como se faz uma tinta, de como se ergue uma parede –, dá autonomia para o ser humano e o faz refletir sobre a sustentabilidade do planeta. A escola se insere nesse contexto, contribuindo para essa reflexão”, estabelece. 

Escola de cidadania 

A importância da escola vai além da formação técnica. Ela promove uma mudança de olhar dos alunos em relação à cidade e ao patrimônio histórico. “Penso que o principal legado seja uma mudança no olhar dessas pessoas e na relação delas com o meio em que estão”, inicia Luiz Fernando de Almeida, que prossegue argumentando que, ao constituir coletivamente um pensamento que decodifica esse valor comum do patrimônio, a instituição contribui para que mais pessoas se sintam corresponsáveis pela conservação e preservação do bem público. “Ou seja, a formação de ofício não é separada da formação de cidadão”, conclui. 

A tese é confirmada pelo depoimento da ex-aluna Sidilene Ramos, 51. Ela conta ter ingressado na escola a convite da própria filha, que fazia estágio na instituição. “O primeiro curso que fiz foi o de carpintaria. Depois, fui fazendo todos os outros. O que mais gostei foi o de alvenaria”, comenta, inteirando ter ficado dois anos seguidos frequentando o espaço. “Nesse semestre, resolvi descansar. Mas, no próximo, já considero voltar para fazer o módulo 2 de algum dos cursos”, conta, fazendo menção aos novos módulos que, por demanda dos estudantes desejosos de se aprofundar mais em algum ofício, começaram a ser oferecidos a partir deste semestre.

Sidilene relata que, com o que aprendeu, pôde realizar, ela mesma, melhorias em sua casa. “Foi ótimo, porque não precisei ficar esperando que alguém fizesse por mim, sabe? E, além disso, economizei”, comemora. Ela também reconhece que o aprendizado trouxe ganhos subjetivos. “Hoje, me sinto mais segura e mais útil. Sinto que tenho mais autonomia até para orientar algum profissional, se por acaso é um trabalho que eu mesma não posso resolver”, garante. “Além disso, a minha forma de olhar a cidade mudou. Agora, fico mais atenta ao nosso patrimônio. Inclusive, já visitei alguns lugares que estavam sendo restaurados e consegui identificar incoerências e denunciei isso ao Iphan”, assegura.

Fonte: O Tempo 

A reportagem viajou a Mariana e visitou a Escola de Ofícios Tradicionais da cidade a convite do Instituto Cultural Vale


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