Após 15 anos, igreja histórica será reaberta em Mariana, que ganhará novo museu

Fachada lateral da Casa do Conde de Assumar, que vai sediar o Museu de Mariana, e da Igreja de São Francisco de Assis — Foto: Maíra Cabral/O TEMPO

Cidade histórica vive a expectativa da reabertura da igreja de São Francisco de Assis e da inauguração do Museu de Mariana, que ocupará a Casa do Conde de Assumar

05/06/2023 às 12h57

 

É com carinho que o artesão e comerciante Ari Eustáquio Antunes, 78, recorda dos tempos em que frequentou a Igreja de São Francisco de Assis, construída entre 1763 e 1794, e a Casa do Conde de Assumar, provavelmente erguida em 1715. “Eu moro aqui há 77 anos, então, posso dizer que conheci o casarão e o templo ainda moleque”, recorda, citando lembranças relacionadas às edificações, curiosamente anexas, que ocupam lugar de destaque nas memórias e na cartografia da histórica Mariana, na região Central de Minas Gerais. 

“Me casei, em 12 de novembro de 1977, nessa igreja, que ficou cheia, porque sempre fui de muitos amigos e, naquela época, a gente convidada uns 20 padrinhos para nos abençoar”, diz, entre risadas, lembrando ter superado percalços na data. “Quase não consegui trocar alianças porque tinha esquecido uns documentos. Além disso, na época, minha sogra não pôde comparecer, porque estava doente e Bernardete Oliveira, minha mulher, teve que ir ao hospital tomar a bênção dela”, rememora.

Diante de um vínculo tão íntimo com o patrimônio, foi com aflição que Antunes viu as duas edificações se deteriorarem com o passar dos anos até que, já em péssimas condições de conservação, fossem interditadas. A igreja foi lacrada pela Justiça, para missas e visitação pública, em 31 de março de 2009, depois que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) sustentou que a estrutura podia desabar sobre os fiéis. O mesmo órgão notificou a Ordem Terceira de São Francisco, então proprietária do imóvel, e a própria prefeitura municipal, que recebeu a casa em regime de comodato, alegando a necessidade de reparos urgentes no local em 2012, quando o imóvel já estava fechado ao público. 

Agora, após quase 15 anos sem acessar o interior dessas edificações e temendo que elas se tornassem mera ruína, o artesão não esconde a expectativa pela reabertura do templo, que voltará a ser administrado pela Arquidiocese de Mariana, e do casarão, onde será inaugurado o Museu de Mariana, sob gestão do Instituto Cultural Aurum – hoje responsável pelo Museu Boulieu, em Ouro Preto. 

“Dá emoção ver a igreja sendo recuperada. Eu sou suspeito de falar, mas, para mim, de todas da região, é a mais bonita devido à luz que entra nela. Enquanto as outras são mais coloridas, lá é predominantemente branco e ouro”, elogia Antunes, confidenciando não ter se aguentado de curiosidade e acompanhado o decorrer das obras. 

Para ele, a recuperação desses imóveis e a nova ocupação da Casa do Conde de Assumar têm tudo para trazer mais atratividade econômica para a região. “Com certeza, teremos mais turistas circulando na região, o que vai ajudar muito a gente do comércio”, avalia, relatando já perceber algum movimento nesse sentido à medida que visitantes mais curiosos costumam ir à loja dele – localizada na rua lateral, nas proximidades das edificações – vão até lá perguntar sobre as obras, que hoje estão em fase final.

O artesão e comerciante Ari Eustáquio Antunes em sua loja nas adjacências da Igreja São Francisco de Assis e da Casa do Conde de Assumar — Foto: Maíra Cabral/O TEMPO

A diretora do Museu de Mariana e do Instituto Cultural Aurum, Edineia Araújo, concorda que a reabertura dos dois espaços possui grande potencial de ativação turística. “Antes de ser fechada, essa igreja era a segunda mais visitada da cidade”, comenta, lembrando que o templo tem como diferencial as pinturas das naves laterais serem obra do professor, pintor e decorador brasileiro Manuel da Costa Ataíde, mais conhecido como Mestre Ataíde. “É no interior desse templo católico que ele está enterrado”, informa.

“Além disso, acredito que a abertura do museu vai ser um divisor de águas para Mariana não só porque existe uma expectativa enorme da população em acessar essas edificações há muito tempo fechadas”, avalia, dizendo que o tipo de gestão proposta para a casa vai fazer toda diferença. “Não vamos ser um museu estático, mas, sim, um centro cultural. E vamos fazer de tudo para que a comunidade se aproprie desse equipamento”, garante.

Ela estabelece que o Museu de Mariana terá atividades periódicas, como o projeto “Sílabas e Sons” – um bem sucedido programa de bate-papo musical com artistas reconhecidos que, há cerca de um ano, vem acontecendo no Museu Boulieu, também administrado por Edineia. “Estamos prevendo, ainda, a abertura de duas salas multiuso, uma delas de cinema, já que, atualmente, a cidade não possui esse tipo de equipamento”, acrescenta. Ela conclui dizendo que o Museu de Mariana também cumprirá um papel educativo importante, oferecendo programas educacionais e atividades interativas. 

Já em relação a exposições de longa duração, a diretora do museu explica que o casarão receberá um acervo diverso e em múltiplos suportes – incluindo fotografias, vídeos e objetos representativos, sejam eles originais ou réplicas. O objetivo principal, diz ela, é narrar a história marianense desde sua fundação, passando pela elevação da condição de vila para a de cidade, além de ter espaço destinado aos distritos do município. Esse registro vai abordar ainda – por meio de réplicas de tronos, indumentárias e outras peças – a história do Arcebispado de Mariana, uma instituição que influencia e influenciou fortemente a identidade cultural da região. Em outra frente, as manifestações locais mais tradicionais também serão destacadas, entre elas, os bordados, os tapetes de sisal, os artesanatos de pedra sabão de cachoeira e os Zé Pereiras, como são chamados os grandes bonecos alegóricos geralmente usados em desfiles de Carnaval.

Projeto antigo

Edineia Araújo explica que as obras na Igreja de São Francisco de Assis e na Casa do Conde de Assumar foram iniciadas conjuntamente, no segundo semestre de 2019. “Foi um restauro complicado e difícil porque os imóveis estavam bastante comprometidos. Mas, felizmente, tudo ocorreu bem e no prazo que havíamos estipulado”, comenta, detalhando que, se os trabalhos de recuperação das edificações levaram cerca de quatro anos, o projeto original é bem mais antigo.

“Na verdade, o processo de busca e execução das formas de restauração teve início em 2012, a partir de uma parceria da Prefeitura de Mariana com o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) das Cidades Históricas – uma iniciativa do governo Dilma Rousseff (PT)”, explica, citando que o projeto do museu foi desenhado originalmente nessa época pela Expomus, uma empresa que atua desde 1981 em projetos de natureza museológica. 

A diretora do Museu de Mariana acrescenta que o Instituto Pedra, de São Paulo, foi responsável pela proponência das obras, que foram realizadas em parceria com a Prefeitura de Mariana e a Arquidiocese de Mariana, com patrocínio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e do Instituto Cultural Vale através do PAC das Cidades Históricas e da Lei Rouanet. 

Segundo ela, a estimativa é que R$ 17 milhões tenham sido gastos com o restauro. Ela pontua que, envolvendo várias equipes em um canteiro de obra que chegou a operar com 150 trabalhadores, houve preocupação da empresa de engenharia responsável pela obra, a Sepres, em priorizar a contratação de mão de obra local, contribuindo para a geração de emprego e renda na região.

Expectativa

“Para todo mundo que participou desse trabalho, para todos que estiveram aqui ao longo desses quatro anos, a sensação é que todo esse processo foi muito gratificante”, garante Edineia Araújo ao relatar uma emoção sensivelmente compartilhada por outras pessoas envolvidas com o projeto. Caso do técnico em conservação e restauração de bens culturais Edson Júnior Luciano.

“Fico muito feliz de colaborar com esse projeto e espero que todas as pessoas, principalmente, a comunidade local, que espera há tanto tempo pela reabertura da igreja, fiquem satisfeitas com nosso trabalho”, diz, enquanto explica o minucioso trabalho de pesquisa e reconstituição realizado por ele. “Entre os desafios que eu e minha equipe enfrentamos, um dos mais presentes diz respeito ao quanto essa igreja foi repintada. Por isso, para chegar à pintura original, foram feitas janelas de prospecção, que são pequenas aberturas na superfície das pinturas para observar se existia alguma outra por baixo. Então, ao chegar às texturas e cores originais, fizemos um trabalho de remoção dessas outras pinturas e, posteriormente, as áreas de perda foram reintegradas”, pontua.

Luciano acredita que a restauração tem tudo para ser bem recebida pelo público. “As pessoas que já estiveram aqui ficaram muito contentes com o que viram. E isso vale tanto para as pessoas mais velhas, que já conheciam o lugar antes dele ser fechado, quanto para crianças e adolescentes, que nunca haviam entrado aqui”, sinaliza, fazendo menção aos grupos de alunos do ensino básico e médio, da rede pública e privada de Mariana e região, apresentados ao espaço. 

“Essa apresentação é importante porque, depois de 15 anos fechado, muita gente não conhece o interior desses lugares, sendo necessário esse processo de sensibilização e formação de público para que as pessoas se apropriem desses bens históricos”, explica Edineia, detalhando que, com a iniciativa – uma contrapartida social pactuada pelo Instituto Petra, responsável pela proponência das obras –, a expectativa é levar ao lugar cerca de 2.500 crianças e adolescentes, recebidos por um grupo de teatro que, por meio de um jogo lúdico e cênico, fala sobre a história da Igreja de São Francisco de Assis e da Casa do Conde de Assumar e celebra a reabertura desses espaços.

Curiosidades

Igreja de São Francisco de Assis. Erguida entre 1763 e 1794, contando com a contribuição de destacados artistas da época, como José Pereira Arouca, Manuel Costa Athaíde, Francisco Vieira Servas e Francisco Xavier Carneiro. O templo foi tombado pelo Iphan em 1938, se destacando por sua imponência e excepcionalidade artística e por preservar sistemas construtivos tradicionais do período barroco, além de abriga um acervo artístico singular. 

Casa do Conde de Assumar. Também conhecida como Casa de São Francisco, faz parte do Conjunto Arquitetônico e Urbanístico tombado pelo Iphan em 1938. Acredita-se que a construção da casa tenha ocorrido por volta de 1715 e tenha servido como residência do último governador da Capitania de São Paulo e das Minas do Ouro, Dom Pedro de Almeida e Portugal, o Conde de Assumar, que exerceu o cargo entre 1717 e 1720. Posteriormente, a casa foi ocupada por Dom Frei Manoel da Cruz, o primeiro bispo de Mariana.

Fé. A história do Conde de Assumar se cruza com a da aparição de Nossa Senhora Aparecida. Ocorre que, quando ele saiu de São Paulo rumo a Ouro Preto, a sua comitiva pernoitou em Piratininga – atual Aparecida do Norte. E ele, um homem perverso e sanguinário, avisou que gostaria de, naquela noite, comer peixe. Temendo castigos caso o desejo do governador não fosse satisfeito, pescadores passaram a lançar redes no rio Paraíba do Sul. Foi quando João Alves, Felipe Pedroso e Domingos Garcia encontram a imagem feita em terracota, medindo 36 cm de altura e pesando 2,5 kg, que estava submersa.

*A reportagem viajou à Mariana a convite do Instituto Cultural Vale

Fonte : O Tempo 


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