A frieza que a pandemia do novo coronavírus levou aos tribunais britânicos, vazios em 2020, sem o clamor de quem teve a vida devastada e aguarda há mais de seis anos por justiça, ganha uma nova atmosfera a partir de hoje. Tem início em Londres, no Tribunal de Apelação, recurso sobre o julgamento da ação internacional pelo rompimento da Barragem do Fundão, em Mariana.
Nos primeiros processos, a pandemia impediu que as histórias ecoassem das bocas dos próprios atingidos, sem a comoção da opinião pública local. Naquele período, brasileiros e estrangeiros só podiam entrar no Reino Unido após quarentena que chegou a 15 dias. Isso mudou e a esperança dos afetados se reacendeu. Para seus advogados, no Brasil o dano sofrido persiste sem justiça.
Os desdobramentos serão acompanhados pela reportagem do Estado de Minas diretamente de Londres, num debate que deve se prolongar até a sexta-feira As vítimas são representadas pelo escritório PGMBM contra a BHP Billiton (BHP Reino Unido e BHP Austrália), que é uma das controladoras da Mineradora Samarco, ao lado da Vale. A Samarco operava a Barragem do Fundão quando esta se rompeu, em 5 de novembro de 2015, matando 19 pessoas – um corpo nunca foi encontrado – e devastando a Bacia Hidrográfica do Rio Doce entre Mariana e a foz no mar do Espírito Santo. A BHP considera que o processo duplica questões abrangidas no Brasil.
Será decidida a jurisdição, definindo se a ação pode ser julgada na Inglaterra ou se deve permanecer no Brasil. O PGMBM responde pelos direitos de cerca de 200 mil pessoas, a maioria pessoas físicas atingidas pelo rompimento, e também 25 municípios mineiros e capixabas, incluindo de Mariana, cinco autarquias, seis instituições religiosas e 530 empresas de diferentes portes.
Para chegar a este ponto, desde 2018 foi montada uma operação grandiosa que contou com esforços de advogados do Reino Unido e do Brasil. Foram reunidos documentos e promovida a fase considerada mais complexa: fazer entrevistas individuais com as 200 mil pessoas, ouvir seus relatos e preencher formulários. "Atualmente, temos operações em três municípios localizados estrategicamente ao longo da Bacia do Rio Doce para fazer a atualização das informações dessas pessoas, porque os danos muitas vezes se intensificam ao longo dos anos, já que eles não foram reparados", afirma Tomás Mousinho, um dos sócios do PGMBM.
Segundo Mousinho, os relatos de piora nas condições e da angústia dos atingidos que consideram não ter recebido uma reparação digna no Brasil fazem da ação no Reino Unido uma oportunidade de justiça."Recebemos informações sobre como o dano persiste e em algumas situações se agrava com o passar do tempo. Em Governador Valadares, por exemplo, até hoje as pessoas são desconfiadas com relação à água (do Rio Doce)", afirma, lembrando que o maior município do Vale do Rio Doce, com 280 mil habitantes, ficou quase um mês sendo abastecido por caminhões-pipa e galões de água distribuídos em longas filas.
E os danos seguem ocorrendo, na avaliação do advogado. "O distrito de Bento Rodrigues (Mariana) não foi reconstruído. Há pescadores que não foram pagos pelo tempo que eles não puderam pescar, e ainda não podem no Rio Doce, porque a segurança com relação ao peixe ainda não foi atestada. Moradores denunciam que o rejeito de minério que até hoje permanece no leito do rio reemerge durante a época de chuvas. As enchentes se intensificaram e a lama tem cheiro diferente, difícil de limpar. E por onde ela passa eles não conseguem plantar nada", descreve Mousinho.
O advogado considera que o público inglês seja sensível aos impactos da mineração. E cita fundos de pensão relevantes pressionando por aprimoramento na governança das atividades minerárias, sobretudo no exterior. “O fórum do Local Authority Pension Fund (Fundo de Pensões da Autoridade Local) declarou que estava consternado com a lentidão do auxílio que deveria ser sido prestado às pessoas que foram afetadas pelas tragédias em Mariana e Brumadinho. O Fundo de Pensões da Igreja da Inglaterra lançou a The Investor Mining and Tailings Safety Initiative (Iniciativas de Segurança para Investidores em Mineração e Rejeitos), para pressionar por mudanças e prevenir futuros desastres. Isso tem reverberado no país”, afirma Mousinho.
Além da morte de 19 pessoas, a tragédia ambiental afetou toda a Bacia do Rio Doce, de Minas ao Espírito Santo
A posição da BHP Billiton é de que o processo não deve prosseguir no Reino Unido, pois duplicaria questões que já são cobertas pelos trabalhos de reparação em andamento, por decisões judiciais dos tribunais brasileiros, ou são objeto de processos judiciais em curso no Brasil. "Em novembro de 2020, a High Court inglesa concordou com os argumentos da BHP e extinguiu o caso por abuso processual. A audiência tem como objeto o recurso dos reclamantes contra a decisão de extinção acima mencionada. Trata-se, assim, de audiência apenas sobre o prosseguimento ou não do processo, em que serão discutidas questões processuais e de jurisdição", posicionou-se a empresa.
Por meio de nota, a BHP Brasil afirma que sempre esteve e continua comprometida em responder pelo suporte necessário aos atingidos. "Os sistemas de reparação e compensação administrados pela Fundação Renova e supervisionados pela Justiça brasileira são os meios adequados para indivíduos e comunidades apresentarem suas reivindicações e obterem reparação. Progresso significativo já foi feito e milhares de indivíduos receberam pagamentos por meio desses sistemas. Para 2022, a Renova anunciou um novo orçamento de R$ 10,4 bilhões – um aumento de mais de 20% em relação a 2021. No final deste ano, aproximadamente R$ 30 bilhões terão sido desembolsados em reparações e compensações para os impactados pelo rompimento da barragem", informou a mineradora.