Uma pessoa dá cabeçadas na parede. Um homem desenha uma casa. Outro guarda folhas de árvore na cueca. Um senhor narra a morte de Virgulino Lampião. Alguém grita.
Os 44 moradores da chácara Nosso Lar, em Anápolis (GO), aguardavam assim o almoço. Pelo menos 10 dos residentes vivem ali há mais de 30 anos — o mais antigo chegou em 1977. A maioria são homens, e um terço é negro. Sem documentos ou referências, eles foram trazidos das ruas por funcionários públicos, transferidos de abrigos ou abandonados pelos familiares.
Nosso Lar faz parte do Inmceb (Instituto de Medicina do Comportamento Eurípedes Barsanulfo). A sigla compreende tanto o hospital psiquiátrico filantrópico fundado em 1950, mantido com recursos próprios e do SUS, quanto a chácara, localizada a 20 minutos de distância e acessada somente por estrada de terra.
O histórico dos moradores ocupa meia lauda manuscrita do Projeto Terapêutico Singular vigente, ferramenta com objetivo de individualizar o tratamento psiquiátrico. A maior parte das histórias, no entanto, é preservada pela memória dos funcionários mais antigos e pelo que restou da voz de cada um após décadas de institucionalização.
Rita* é uma das pacientes que mais conversam, ainda que a fala seja embolada. Mulher negra de 69 anos, aproximou-se da reportagem do TAB com os seios à mostra, pedindo ao enfermeiro uma roupa melhor entre as peças doadas à instituição — ela também costuma tirar a blusa para fazer turbante.
Os funcionários alertam para o hábito que Rita tem de pegar objetos alheios. Ela chegou ao Inmceb em 2008, transferida de um abrigo de idosos da cidade, após um episódio com fogo. Seu diagnóstico é de esquizofrenia e transtornos mental e comportamental.
Rita conta que trabalhou como empregada doméstica, teve cinco filhos e foi casada com dois homens, sendo um deles um "marido que judiava". O serviço social nunca confirmou a história, mas, por ser repetida e detalhada, a equipe acredita nela.
Ela parece gostar de presentear os outros — trouxe uma caneca e um elástico para cabelo — e rabiscou letras e flores no bloco de anotações da reportagem. Em mais de uma vez, Rita disse não gostar da chácara e pediu para ir embora.
Às 7h30, os moradores aguardam no refeitório a primeira das cinco refeições do dia. A comida chega em um furgão compacto que o hospital envia para a chácara, junto de medicamentos e roupas lavadas. Pelo menos três pacientes ganham comida na boca. Outros, "para não engasgar", recebem o pão totalmente dissolvido no café com leite e o comem de colher.
"Aqui se passa bem, comida gostosa, fina", elogiou uma paciente. Mas tem gente que sente falta de doce na dieta, e pede no particular aos funcionários e visitantes. Em uma das visitas, a reportagem deu uma bala de menta a um senhor, que a dividiu com um amigo.
Na hora da refeição, duas pessoas estavam amarradas à mesa por uma faixa na cintura porque, segundo um funcionário, uma delas queria se levantar e a outra, pegar a comida dos demais. A contenção mecânica é prescrita pelo médico responsável para alguns dos pacientes. Um deles reclama: "Não tem isso de bater, não. Aqui eles amarram".
Após o café, o lanche e a ceia, um técnico de enfermagem chama os internos pelo nome e entrega os medicamentos de cada um. Parte deles toma com água de uma jarra em que mergulham um único copo e a mão para enchê-lo; outros mordem o comprimido. Incomodada com o compartilhamento do item, uma mulher sai para lavar o copo antes de beber.
Na hora de escovar os dentes, cada interno recebe sua escova com creme dental. Quase todos são banguelas, em consequência de problemas bucais. De acordo com uma funcionária, quando um paciente sentia dor de dente, a solução dada pelos dentistas muitas vezes foi a extração. Durante a reportagem, um homem reclamou de dor de dente e a administração prometeu que o levaria a um dentista.
Uma vez por mês, raspam-se os pelos dos pacientes para facilitar a limpeza na hora do banho. Um funcionário segura as pernas, outro os braços e um terceiro depila as axilas e a região íntima. Os cabelos são cortados bem curtos para evitar seborreia, piolho e "aparência descuidada".
Uma das poucas mulheres com cabelo na altura do ombro, preto e liso da ascendência japonesa, era Lúcia*, internada há 30 anos. "Dá dó cortar e ela consegue pentear sozinha", justificou a técnica de enfermagem que pinta as unhas das internas.
Embora não seja permitido namoro na chácara, Lúcia tinha pretendentes. Em seu histórico constam fugas de casa, mas os funcionários falam ainda em um possível caso de abuso sexual. O Inmceb conseguiu localizar os irmãos e uma filha, mas nenhum familiar quis levá-la da chácara. Entre a quarta e a quinta visita da reportagem, Lúcia faleceu.
Nos dias úteis se faz terapia ocupacional: confecção de tapetes, artesanato ou desenho. Mais da metade dos moradores não participou das sessões durante a visita da reportagem. Em vez disso, eles ficavam no pátio sentados, deitados no chão ou dando voltas. Na mesa de revistas antigas do local onde ocorrem as atividades, um homem esfregava o rosto em cada imagem que via, e Graça* tentava ler. Perguntada se havia frequentado a escola, ela respondeu que sim, mas em outra encarnação.
Graça está internada há 32 anos e sofre alucinações visuais e auditivas. Os diretores do Inmceb, que declaram exercer a função de forma voluntária, seguem a doutrina do espiritismo, que é reencarnacionista. Para Zilmar Pereira, diretor-presidente, a doença mental pode ser consequência de atos de vidas passadas ou de espíritos desencarnados que influenciam o mal, os obsessores.
Nos anos 1940, muitos hospitais psiquiátricos foram fundados por espíritas no país, diz ele. "O ideal espírita de cuidar da saúde mental é o que prega a luta antimanicomial, mas ela teve um viés ideológico", avalia Pereira sobre a reforma psiquiátrica, iniciada no Brasil em 2001.
Antes da pandemia havia sessões espíritas na chácara. Em 20 minutos, a diretoria fazia uma oração coletiva e ministrava a "fluidoterapia", que consiste na transmissão de energia magnética pela imposição de mãos — o chamado "passe" — ou ingestão de água em que espíritos teriam inserido propriedades medicamentosas.
Nenhum paciente, no entanto, se declara espírita. "Eles não têm essa capacidade cognitiva." Centros espíritas fazem as poucas visitas que os moradores recebem, muitas vezes levando lanches e presentes para os internos. Fora isso, a rotina na chácara é quebrada por comida de lanchonete — pamonha, cachorro-quente — uma vez por semana, churrasco duas vezes ao ano, comemoração dos aniversários a cada seis meses e, no Natal, um almoço, jantar e passeio de ônibus para eles verem a decoração da cidade.
José* era pré-adolescente quando foi internado no Inmceb, em 1991. Quem narra sua história são os funcionários, pois ele é surdo. Dizem que o pai, depois da morte da mãe, o colocou para trabalhar em um chiqueiro de Corumbá de Goiás, onde teria sido resgatado vivendo como os porcos.
Quando chegou ao hospital, costumava engatinhar, mastigar as vestes, virar o prato para comer sem as mãos e até grunhir. Hoje aos 40 anos, José precisa usar fralda. Do comportamento traumático que apresentava ao chegar na chácara, ainda se senta com as pernas juntas ao peito e emite um gemido constante. Ele foi diagnosticado com retardo mental grave e epilepsia.
A limitação funcional não surge com a doença mental, mas pode vir de deficiências físicas, do envelhecimento ou da longa permanência em instituições psiquiátricas, que torna crônicos alguns sintomas. Internada há décadas, uma paciente que antes trabalhava hoje não consegue mais tomar banho sozinha.
Para que essas pessoas recuperem a autonomia, foi instituído pelo Ministério da Saúde, em 2000, o Serviço Residencial Terapêutico. Trata-se de uma casa para até 10 pessoas, localizada em espaço urbano, que conte com suporte profissional. A residência deve ser mantida com o recurso dos leitos hospitalares que antes eram ocupados pelos seus moradores.
A prefeitura de Anápolis estuda a transferência dos pacientes da chácara para as casas. Mas o chamamento público que escolheria a instituição mantenedora das cinco residências a serem implantadas, com custo mensal de R$ 30 mil cada uma, desclassificou todos os inscritos por não cumprirem requisitos do edital.
O próprio Inmceb foi uma das organizações que se inscreveram no chamamento. O diretor Zilmar Pereira acredita que separar os pacientes uns dos outros e da equipe pode ser prejudicial a eles. "Nós também temos afetividades com esse pessoal."
De acordo com o instituto, cada interno tem um custo mensal de cerca de R$ 3 mil. A despesa é paga com o benefício assistencial que alguns deles recebem, verbas próprias do hospital e repasses do SUS.
Os funcionários acreditam que pode haver problemas instalando pacientes em uma casa. "Quem defende isso [as residências terapêuticas] não sabe o que acontece aqui [na chácara]", opinou uma técnica de enfermagem que não quis se identificar.
A psiquiatra Maristela Barcelos, que há 20 anos atua em Centros de Atenção Psicossocial de Minas Gerais, discorda. A equipe do instituto poderia trabalhar nas casas para manter a ligação com os pacientes, por exemplo. Já as possibilidades de agressão, fuga e furto, os pacientes aprenderiam a evitar.
Enquanto os especialistas discutem o destino dos moradores da chácara, ao menos três deles pedem para ir embora. Outras duas admitiram não ter para onde voltar, embora reclamem do tédio. A paciente mais velha contou que sonha ter uma casa com cortina e "só um pouquinho de gente" para poder fumar. O interno mais atento às notícias da TV pediu uma "máscara do coronavírus" para poder sair.
Em "A Lua vem da Ásia" (1956), Campos de Carvalho criou o diário de um homem que não sabe que vive em um manicômio. "Escrevendo a história da minha vida, antes que a escrevam os outros ou que não a escreva ninguém", justifica o personagem. Ao contrário da ficção, ainda é preciso escrever sobre os pacientes da chácara.
Durante a reportagem, faleceu também Maria*, registrada com o sobrenome "de Tal" por falta de informações. A idade aproximada era de 88 anos. Pela maneira com que protestava quando lhe tiravam a boneca, os funcionários achavam que um filho havia sido tomado dela à força. Com os dedos tortos, ainda costurava. Mesmo de cadeira de rodas e muda, apontava para onde queria ir.
*Nomes fictícios para preservar a identidade dos entrevistados
Fonte:uol